Sobre limites e a busca da perfeição

Fletcher é um mentor “casca-grossa”. Com um tom de voz intenso, um biotipo físico que marca presença e um ar superior de quem carrega experiência pesada na mochila, Fletcher é respeitado como nenhum outro professor no Conservatório Shaffer, a escola de música mais premiada dos Estados Unidos. Seu propósito é levar seus mentorados-alunos à um nível que jamais imaginariam chegar sozinhos.

Fonte: Whiplash: Em Busca da Perfeição (2014)

Neiman é o menino pródigo da bateria. Apesar da pouca idade, se destaca na Shaffer e ganha vaga no seleto time da banda de Fletcher, a Studio Band. Neiman dedica a maior parte das horas do seu dia ao treino e estudo da música, sacrificando sua vida social, amigos e até sua namorada pela banda. Seu propósito é ser um dos maiores músicos da sua geração.

Fonte: Whiplash: Em Busca da Perfeição (2014)

O destino aparentemente trabalha a favor da aproximação de Fletcher e Neiman, e o cenário da música finalmente está próximo de conhecer seu próximo astro. Aparentemente, as condições são ideais: um ótimo mentor exigente e um menino pródigo, ambos com vontade de fazer história.

Eis, porém, que a fórmula da tragédia começa a se compor. Fletcher é constantemente agressivo com Neiman (assim como com todos os seus outros mentorados), cria um ambiente hostil na Shaffer e expõe seus alunos à situações de estresse todos os momentos. O menor erro, dentre todos os acertos possíveis, pode custar a sua cabeça na Studio Band somada à uma ridicularização pública.

Fletcher cria uma tropa de elite de alunos na Studio Band.

Neiman leva sua oportunidade à sério e, em determinado momento, molda toda a sua vida pessoal à música. Termina um relacionamento com uma garota, discute com sua família à mesa de jantar defendendo os seus sonhos e coloca sua saúde e vida em risco ao se submeter à condições extremas de prática da bateria.

Em sentido contrário do sucesso musical, o enredo coloca os dois personagens em rota de colisão consigo mesmos. A busca pelo próximo astro (o “vencedor”) parece não ter limites, e é aceitável na banda de Fletcher comportamentos como obsessão, sacrifício e compulsão.

Este é o cenário pintado na trama do filme Whiplash (2014). Mas, além da ficção, os personagens que nos parecem hollywoodianos podem, de repente, se tornarem muito mais reais do que imaginamos. Você pode ser vizinho de um Fletcher, ter um primo Nilman ou cruzar com várias dessas figuras na rua todos os dias. Pode identificar alguns na sua sala da faculdade, no seu emprego e talvez Fletcher seja até mesmo seu chefe, apenas querendo que você seja um excelente profissional.

Até que um dia, bem menos do que de repente, você se olha no espelho e se vê na figura de Neiman. Um Neiman sacrificando a sua família pelo sonho de se tornar um presidente de uma grande empresa, um jogador de futebol ou o melhor vendedor da sua firma. Talvez olhe para o espelho e se veja como um Fletcher. Um Fletcher que é capaz de ridicularizar e humilhar seus pares de trabalho, querendo que todos sejam campeões como você.

Diferente de estragar o desfecho do drama vivido por Neiman e Fletcher, escrevi este texto para compartilhar três lições sobre valores pessoais que o filme me fez revisitar na minha rota pessoal. Sem spoilers e sem demagogia, vamos lá!

SER UM “CAMPEÃO” NÃO RESPONDE TODAS AS PERGUNTAS

Aparentemente, a dedicação de Neiman à bateria e aos ensaios parece inspirador aos nossos olhos de meros mortais. Olhando sob outra perspectiva, porém, é possível ver a toxicidade do seu propósito, que corrompe seu ego e o transforma em uma máquina fria. É criada uma sensação de que “ser o melhor da sua geração” responderá todas as perguntas sobre sua existência.

O que, de fato, significa ser “campeão”, ou “ o melhor”? Estar disposto a pagar o preço para chegar lá é muito mais do que um tradeoff entre seu bem-estar e seu sucesso. Um típico Neiman, focado somente na realização do seu sonho, escolhe abdicar da família, amigos, saúde, bem-estar e relacionamentos saudáveis para simplesmente “ser o melhor”.

A escolha de Neiman parece ser a escolha dos heróis e dos verdadeiros campeões. Sob uma perspectiva cega, é aqui que homens são separados dos meninos. Realizar o sonho de ser CAMPEÃO responde todas as perguntas? Me parece que existe um caminho alternativo mais eficiente.

A AGRESSIVIDADE NÃO ACELERA RESULTADOS

[Mini-spoiler aqui] A cena de Neiman trabalhando no balcão de uma lanchonete parece a metáfora perfeita. É o próximo ídolo da música americana trabalhando em um emprego qualquer.

Quando finalmente estamos de “saco cheio”, simplesmente devemos mudar de rota. E não tem nada de errado nisso!

A agressividade de Fletcher leva seu time a um cenário de competição e stress que mina a energia e mata os relacionamentos dos seus liderados. Não existe vida pessoal e familiar andando em paralelo com o sonho de “ser campeão”. Quantos possíveis astros (do futebol, da música, da medicina, da economia, etc) estão fora do jogo depois de cruzar com o caminho de um Fletcher?

EXISTE UM LIMITE ENTRE SER “FODA” E SER VOCÊ MESMO

Não há nada de errado em querer ser “o melhor”. Querer superar limites. Não há equívoco buscar nossos sonhos e colocar metas audaciosas para nossa vida. A nossa evolução pessoal (mente, corpo e espírito) depende da vontade de querermos ser melhores.

O erro acontece quando sacrificamos nossa integridade e relações como uma moeda de troca do nosso sonho.

[Mini-spoiler aqui] Neiman coloca sua vida em risco para provar à Fletcher que é capaz. Um acidente de carro não o impede de tocar em uma competição, que acaba virando uma verdadeira tragédia.

Ser nós mesmos é muito melhor do que sermos Fletcher e Neiman. Buscar uma vida de equilíbrio entre realização e bem estar parece ser muito mais do que fundamental em uma sociedade cada vez mais “doente” pelo sucesso e pela vitória.

Whiplash cria um cenário onde triunfar parece ser o único caminho possível. Muito além da ficção de um estúdio de cinema, quais são os personagens que estamos desenhando para nossas próprias vidas?